terça-feira, 16 de junho de 2009

Pelas Bordas do Cinema

Professora lidera grupo que pesquisa filmes caseiros
Marco Rodrigo

A trajetória das pesquisas sobre cinema da professora Bernadette Lyra, coordenadora do Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi-Morumbi (SP), surpreendeu muitos dos seus colegas acadêmicos. Depois de escrever uma tese de doutorado abordando o diretor Júlio Bressane e ministrar cursos sobre alguns dos maiores cineastas da história, como Andrei Tarkovski e Manoel de Oliveira, Bernadette dedicou-se a estudar filmes que não têm espaço na história oficial do cinema. O interesse pelo novo objeto de pesquisa foi tanto que a professora criou o conceito de “Cinema de Bordas” para designar produções independentes de ficção, realizadas com pouco ou nenhum dinheiro, que não chegam aos circuitos comerciais. Inusitada ao princípio, a ideia tomou fôlego e inspirou outros professores. Bernadette lidera o grupo Formas e Imagens na Comunicação Contemporânea, que reúne oito pesquisadores dedicados ao mapeamento dessa produção audiovisual feita às escondidas, do Amazonas ao Rio Grande do Sul. O grupo já publicou dois livros (Cinema de Bordas e Cinema de Bordas 2) e organizou mostras com esses filmes.

O gosto cinematográfico de Bernadette sempre foi eclético. A professora admira os grandes mestres do cinema, mas nunca escondeu que solta boas risadas com as chanchadas da Atlântida, que considera a verdadeira filmografia da cultura brasileira. Na mesma vertente de obras nem sempre bem-vistas pela crítica, a pesquisadora passou a investigar os filmes que exploravam temáticas de sexo e terror, caminho que a levou ao atual estudo de filmes caseiros. Com evidente empolgação, Bernadette tem o mesmo prazer em falar sobre Manoel de Oliveira, cineasta português, e Manoel Loreno, o Manoelzinho de Mantenópolis, no Espírito Santo, diretor de filmes de bordas, como mostra a entrevista a seguir.

Por que o nome Cinema de Bordas?

Borda é tudo aquilo que está fora do centro. Toda instituição tem um apoio central, no qual firma suas regras, suas normas. No caso do cinema, a normal é a produção industrial cara, que requer trabalhadores especializados, e que será exibida em salas de cinema e TVs. Já os filmes de bordas não estão dentro desse conceito de hegemonia cinematográfica. São obras que, a princípio, não são consideradas relevantes, dignas de estudo, mas são tão válidas quanto o lado hegemônico. É uma espécie de cinema paralelo, que está sempre às bordas do oficial.

Qual o papel das novas tecnologias nesse tipo de cinema?

A democratização tecnológica dos últimos anos, das câmeras VHS até as digitais de hoje, certamente facilitou a realização desses filmes. Um realizador que mora no interior do Ceará ou de Pernambuco, por exemplo, tem recursos para fazer um filme em sua própria cidade. Acontece também um processo de reciclagem de equipamentos. Os materiais defasados, já ultrapassados para a produção industrial das grandes cidades, muitas vezes vão para o interior e são reutilizados pelos cineastas de bordas.


Para a senhora, o filme de bordas é mais relevante como fenômeno social, em termos de mobilização de um grupo de pessoas para um fim comum, produzir um filme, ou também pode ser avaliado como objeto estético?

A característica mais evidente desse tipo de filme é ser um fenômeno sócio-cultural. Os realizadores trabalham com pessoas e elementos da própria comunidade em que vivem, contando histórias que, muitas vezes, dizem respeito a essas comunidades. Mesmo que tenham elementos fantásticos e sobrenaturais, são histórias que fazem parte do universo cultural dessas localidades, que circulam oralmente de geração a geração. Durante a realização do filme, no entanto, essas histórias locais se misturam com toda a bagagem visual desses realizadores, com tudo que eles já viram na TV, cinema, história em quadrinhos. Dessa combinação entre folclore, cultura popular e a influência dos meios de comunicação, nascem os filmes de bordas. Nesse sentido, podemos sim estabelecer um olhar crítico, logo, um olhar estético sobre esses filmes. Não é o mesmo olhar, é óbvio, que podemos aplicar a um filme autoral, a um filme do Fellini ou Bergman; é um outro olhar, nem pior, nem melhor, apenas outro.

A maioria dos filmes de bordas conta histórias de terror, ou pelo menos tem forte presença de elementos sobrenaturais. Por que esse diálogo tão intenso com esse gênero?


Primeiro é preciso fazer uma distinção. Os filmes de bordas não são filmes de gêneros, são filmes que utilizam os gêneros. Não podemos classificá-los de filmes de terror. O realizador pegou as características das histórias de terror e utilizou-as de forma especial. A transferência daquilo que o realizador já viu em filmes de terror para o filme que ele virá a fazer é que faz a obra ser de bordas. Quanto à recorrência da temática do terror, deve-se ao fato de que a parte maldita sempre interessou às bordas. O que é o marginal? É aquele que é o maldito. E qual é a parte maldita? É o sexo, o terror, o humor. Esse tripé está sempre presente no filme de bordas.


Alguns aspectos dos filmes de bordas lembram o Cinema Marginal, dos anos 60/70. A senhora, inclusive, escreveu uma tese de doutorado sobre Júlio Bressane, cineasta geralmente associado aos filmes marginais. Podemos estabelecer alguma relação entre o Cinema de Bordas e o Cinema Marginal?

O Cinema de Bordas não é movimento como o Cinema Marginal foi, é um conceito criado por pesquisadores para agrupar e estudar filmes. Realmente existem algumas semelhanças, como o uso de extravagâncias, de uma estética suja, mas os realizadores de bordas não têm a vertente que o Cinema Marginal tinha de ser poesia. O Bressane chega a dizer que o Cinema Marginal é “cinema poesia”. Era um cinema que queria ser original, vanguarda. Já o de Bordas não tem a originalidade como meta. Essa é a diferença. O Cinema Marginal queria mostrar uma originalidade total em relação ao cinema estabelecido. Já o Cinema de Bordas trabalha com coisas já vistas, é um cinema de segunda mão.

Como a senhora definiria esses cineastas de bordas?

Em geral, são autodidatas que vivem em pequenas cidades ou próximos a grandes centros urbanos. Muitos moram em localidades em que nem existem salas de cinema. O que os une é a grande paixão que têm pelo cinema. Eles fazem filmes nas condições mais adversas, com pouquíssimos recursos, mas não desistem. Nunca um multiplex exibirá um filme do Rambú, do Amazonas, ou do Manoelzinho, do noroeste do Espírito Santo. Os realizadores estão conscientes disso. O que desejam é continuar filmando nas suas comunidades.