segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Singularidades de um cineasta centenário


O principal diretor português, que está completando 101 anos, fala de sua nova película, baseada em um conto do escritor realista eça de queiroz, e se diz contra "fazer uma experiência" no cinema

MARCO RODRIGO ALMEIDA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Pouco antes de completar 101 anos (seu aniversário foi na sexta-feira), o cineasta português Manoel de Oliveira disse, em entrevista à Folha, que a morte não o assusta, apesar de pensar mais nela. "O que me acompanha é uma certa melancolia", conta. Quem acompanha sua obra, no entanto, sabe que tal desencanto não interrompeu sua capacidade criativa. Desde o início da década de 1990, ele tem lançado em média um filme por ano.
Em visita ao Brasil, foi homenageado com a Ordem do Mérito Cultural, no Rio de Janeiro, em novembro passado. No dia seguinte, recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Federal de Minas Gerais, onde também participou do projeto Sentimentos do Mundo, que debateu sua obra.
Na mesma noite, voltou para Lisboa. "É difícil ter fôlego para acompanhá-lo", disse Aniello Avella, professor de história da cultura dos países de língua portuguesa na Universidade de Roma, 40 anos mais jovem.
O mais recente filme do cineasta, "Singularidades de uma Rapariga Loura" (ainda sem previsão de lançamento no Brasil), baseado em um conto de Eça de Queiroz, foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo deste ano.
O primeiro, o curta "Douro, Faina Fluvial", foi lançado em 1931.
O tempo parece correr sempre a favor de Manoel de Oliveira, que iniciou sua principal fase artística com "Amor de Perdição" (1978), quando já tinha 70 anos.
Na entrevista a seguir, concedida em Belo Horizonte num dos intervalos de sua apertada agenda, o diretor falou de sua relação com os atores, de como preserva o mistério dos personagens e do respeito que tem pela obra de grandes romancistas -além de Eça de Queiroz (1845-1900), outros como Camilo Castelo Branco (1825-90).


FOLHA - "Singularidades de uma Rapariga Loura" é a primeira adaptação que o sr. faz de uma obra de Eça. Por que escolheu esse conto, que não é uma de sua obras mais famosas?

MANOEL DE OLIVEIRA - Não é famosa, mas é das minhas prediletas. Na verdade, foi José Régio [escritor português, 1901-69] quem me indicou a leitura. Eu andava muito com ele. O Régio era um homem extremamente sabedor, muito intuitivo. Dizia-me que esse conto era das coisas mais interessantes do Eça.
Muitos anos depois, quando pensei em fazer um filme sobre Eça, lembrei-me desse título e então fui ler o conto. Gostei muito. Primeiro escrevi um roteiro que se passava na mesma época do conto. Depois atualizei para o presente porque o produtor do filme me disse que as tipoias, os guarda-roupas, os transeuntes, tudo era muito impróprio, muito caro.
Era muito difícil de fazer, pois isso se passava no centro de Lisboa. Hoje, a cidade está perdendo o caráter de antigamente. Agora há prédios novos, muitos modernos. E, é claro, os empreiteiros. Os prédios modernos são todos iguais, é tudo a mesma coisa. Muito vidro, muito pouco recato. Gente da rua vê o que está a passar no interior das casas.


FOLHA - Além de ter atualizado a história, o sr. deu mais destaque a Luísa, a rapariga do título. No filme, ela é uma personagem mais complexa.

OLIVEIRA - Mas o filme segue à risca o conto. Não é melhor do que o conto. Pode estar mais ou menos à altura dele, mas não é melhor. Ele principia numa tipoia em que vão dois passageiros. Esses dois passageiros são arrumados numa casa para dormir, no mesmo quarto, um a cada lado. O conto diz que se conta a um desconhecido o que se não conta à mulher ou a um amigo. E de fato é isso, às vezes um desconhecido é um pretexto para um desabafo. Macário [o protagonista], já um homem de idade, já um velhote, desabafa com o outro sujeito, com o narrador, um caso de amor de sua juventude.
A transformação que fiz é que, além de ser jovem, Macário começa o filme fazendo uma viagem para se recuperar da decepção amorosa pela qual passava. Mas a viagem é secundária.
E, em vez de ser a outro cavalheiro, é a uma senhora que ele conta sua história. Uma senhora que ouve atentamente, com os olhos fixos. É uma atitude, um sinal de que a pessoa está muito interessada. Todo movimento é distrativo.
Os realizadores que fazem muitos movimentos, que colocam a câmera para cima, para baixo, de longe e assim sucessivamente, estão a tirar toda a atenção daquilo que se passa, não estão a fixar nada.

FOLHA - Em "Singularidades...", a história aparentemente se passa nos dias de hoje, mas os costumes, as relações entre as personagens são típicos do século 19 e, os diálogos, iguais aos do conto. O sr. não pensou em alterá-los?
OLIVEIRA - Não toquei no diálogo porque não seria cordial tocar no diálogo de Eça, sobretudo não estando ele já vivo. Por outro lado, acho que é muito curioso esse modo de dizer, que é perfeitamente aceitável hoje, mas tem um cunho muito particular, um cunho escrito por um homem que manipulava a língua admiravelmente.
São os dois grandes: Camilo Castelo Branco, que é um romântico, e Eça de Queiroz, que é um realista. São dois vultos muito importantes da nossa literatura.


FOLHA - Apesar de admirar Eça, o sr. já declarou que o realismo por vezes o aborrece. O que o desagrada nesse estilo?

OLIVEIRA - Por exemplo, em "Os Maias" e em outros livros, há descrições muito extensas. Descreve muito o tapete, os diferentes tipos de tapetes, os móveis, aquela coisa toda. Era típico do realismo da época. A pintura poderia traduzir isso, não é?
O realismo hoje já não se distrai com o ambiente. É diferente. Mas acho que, nesse conto do Eça, o diálogo é muito bonito e dá um certo sabor.


FOLHA - Em "Singularidades...", Luísa é uma personagem que não chegamos a compreender totalmente. Quando retomou "A Bela da Tarde" (1967), de Buñuel, no filme "Sempre Bela" (2006), o sr. também não esclareceu o que aconteceu com aqueles personagens. Antes, aprofundou ainda mais o mistério que já existia na história original. Como o sr. desenvolve seus personagens?

OLIVEIRA - Minha explicação das personagens é o desenvolvimento da ação. Essa qualidade artística dá uma expressão intuitiva e vai para além da capacidade natural delas. Quer dizer, elas ficam muito mais humanas, no bom ou no mau sentido. O que dá às atrizes e aos atores a possibilidade de transpor uma realidade que normalmente não se vê.
No meu filme "A Caixa" [1994], isso é muito revelador.
Há duas mulheres que se encontram, com filhos no colo, e medem sua força feminina, sua capacidade feminina. Isso é extraordinário, ultrapassam suas próprias personalidades. Na vida corrente, não são da mesma maneira.
Bem, as atrizes estão realmente exprimidas. Porque arte é expressão. Eu não gosto muito dessa coisa que dizem agora, "vou fazer uma experiência". O José Régio, por exemplo, dizia que experiência se faz em casa.
Quando se faz um filme, uma pintura, não se está a experimentar coisa nenhuma. Está-se a dar, totalmente a dar, a dar na sua totalidade. E o que vai é aquilo, sai bem ou sai mal, mas não se está a fazer uma experiência coisa nenhuma.


FOLHA - Como o sr. consegue envolvimento, entrega por parte dos atores?

OLIVEIRA - Dou muita liberdade aos atores. Não me oponho ao que eles fazem; vejo o que fazem, se está bem, eu digo bem; se está mal, digo "não, não, faça assim, faça assado, desta ou daquela maneira".
Eles leem o papel, estudam e criam seu personagem. O verdadeiro ator é muito bonito e muito determinado. Seja qual for sua técnica. Eu deixo que faça como achar melhor.

FOLHA - Seus últimos filmes estão mais curtos. "Singularidades..." tem apenas 63 minutos, "Cristóvão Colombo - O Enigma" (2007) tem 75 e "Sempre Bela" (2006) tem 68 minutos. O sr. fez filmes muito longos por algum tempo. A experiência lhe permite ir direto ao ponto?

OLIVEIRA - Não. Creio que, quando a gente começa a ter uma vida muito longa, começa a fazer filmes mais curtinhos (risos).
Não sei... "Amor de Perdição" [1978] tem quatro horas e 20 minutos. Na França foi um sucesso, a crítica adorou o filme. Em Portugal foi um desastre.
Enfim... Minha posição é clara. Há realizadores que buscam, invocam prêmios. Eu sigo os meus princípios. Dizem que ninguém é perfeito no seu próprio país. Embora não seja perfeito, coisa boa não há de se esperar na própria casa.


FOLHA - O sr. faz 101 anos e seus filmes possuem enorme frescor e vitalidade. Como o sr. se sente?

OLIVEIRA - Eu me sinto mais novo (risos). A morte não me assusta, o sofrimento, sim. O que me acompanha é uma certa melancolia. Porque vi desaparecerem muitas pessoas queridas. Primeiro os pais, depois os irmãos e mesmo os amigos.
Não tenho nenhum amigo da minha idade que diga "ó, rapaz, lembra-se de quando tínhamos 17 anos e tal...". É uma melancolia muito forte.
Pensa-se mais na morte. Estou casado há 70 anos com a Maria Isabel. Ela quer que eu morra primeiro. E eu quero que ela morra primeiro (risos). Para que ela seja acompanhada na sua morte [no seu enterro], para que eu seja acompanhado na minha morte [no meu enterro].
Mas não está nas nossas mãos decidir, não é mesmo?
É claro, a gente pensa "o que será depois da morte da minha mulher", mas não posso perguntar o que será depois da minha morte. A gente sabe que é inútil.
O homem é um bicho de uma curiosidade infinita, mas de um conhecimento muito limitado.
(Entrevista publicada no caderno "Mais!", do jornal Folha de S.Paulo, em 13 de dezembro de 2009)